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Viagem ao Volga: relato do enviado de um Califa ao Rei dos eslavos
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Um impressionante relato de uma expedição realizada no século X por um viajante árabe traz o testemunho de diversos rituais e tradições do mundo islâmico e descreve um funeral viking. Documento ficou desconhecido durante centenas de ano e ganha sua primeira tradução ao português.
O relato do viajante árabe Ahmad Ibn Fadlān, publicado sob o título Viagem ao Volga – relato do enviado de um califa ao rei dos eslavos, é um dos testemunhos históricos mais surpreendentes de seu tempo. Ibn Faḍlān integrou, no século X, uma expedição saída de uma das capitais do império islâmico, Bagdá, rumo às terras do Norte, até deparar com um assentamento viking às margens do rio Volga. Sua narrativa única moldou a imagem das culturas nórdicas ao redor do mundo durante séculos, em seus hábitos e rituais. Mas não só: ao longo de um trajeto que cobriu 4 mil quilômetros e durou quase um ano, Ibn Fadlān oferece uma narrativa vívida e detalhada dos vários povos que encontrou pelo caminho.
A história começa entre os anos 921 e 922 d.C., quando o califa da dinastia abássida Almuqtadir Billāh enviou uma comitiva até o rei dos eslavos, Almas Ibn Yaltwār, que havia pedido ajuda para a construção de uma mesquita para propagar a fé islâmica nos seus domínios e de um forte para protegê-los dos inimigos. A Ibn Fadlān coube a função de secretário-geral do califa e porta-voz do “comandante dos fiéis”, o que incluía a redação de cartas e a entrega de presentes. A jornada partiu de Bagdá, chegou ao reino dos búlgaros do Volga – atual Cazã, na Rússia – e criou um vínculo inédito entre o líder islâmico e os habitantes do Norte, numa missão tanto diplomática quanto religiosa. Ao longo da narrativa fica claro que os eslavos queriam se defender dos khazares – também visitados pela expedição do califa, ou o que restou dela depois das desistências causadas pelo frio. Os khazares eram um povo de origem turca recém-convertido ao judaísmo que já então cobrava tributos dos eslavos e continuava a avançar.
Além de cumprir as funções burocráticas que lhe eram exigidas, Ibn Faḍlān apresenta relatos espantosos, como o de uma cerimônia fúnebre viking, além de várias observações de censura a hábitos ofensivos ao islamismo, como a licenciosidade das mulheres oguzes e os repugnantes ritos de higiene dos rus (os vikings migrados da Suécia), cujos corpos tatuados, por outro lado, considerou os mais perfeitos que já viu. Não escapam do desgosto do narrador os equívocos na prática da fé islâmica entre os eslavos.
Outras passagens são dignas dos melhores romances de aventura, como a travessia do frio, “com seus cavalos, mulas, burrinhos e carroças”, e o contato com o cadáver de um homem gigantesco, além de uma bela e maravilhada descrição da aurora boreal, que Ibn Fadlān vê como o enfrentamento de dois exércitos fantasmagóricos. Outro momento de tensão é a tentativa de bloquear a passagem da expedição por saqueadores oguzes. O espírito de observação do narrador, no entanto, se detém também em ricas minúcias sobre os povos visitados, como os hábitos religiosos e militares, a flora e a fauna, a indumentária, a alimentação, as regras de herança e casamento e as práticas sexuais. Chegando ao destino, a missão falha em entregar parte do prometido.
Pouco se sabe sobre a vida de Ibn Fadlān. Fragmentos do relato foram encontrados no Turcomenistão e propagados no século XIII, mas apenas em 1923 um historiador turco descobriu a versão atualmente conhecida, talvez incompleta, e editada em livro em 1939. É esse texto que baseou a edição, em tradução direta do árabe feita pelo professor de literatura Pedro Martins Criado, provavelmente a primeira em língua portuguesa.